ORATORIES FOR BANAL THINGS IN LIGHT BOXES
Territórios atravessados por afetos
Territories crossed by affections
Mari Gemma De La Cruz
Descrevo, nas linhas que se seguem, os sentimentos que percorreram meu processo criativo durante a construção desta cartografia afetiva ligada ao bairro Porto de Cuiabá, cidade e rio com mesmo nome, onde vivo há mais de trinta anos.
Minha primeira aproximação com o bairro do Porto ocorreu em 1994 através do “Seu Swat”, raizeiro tradicional, que trabalhava em seu ervanário. Na época, meu trabalho estava focado no estudo das plantas medicinais para o Mestrado em Saúde e Ambiente da Universidade Federal de Mato Grosso, do qual resultou no livro “Plantas Medicinais do Mato Grosso – Farmacopeia popular dos raizeiros”.
Lembranças da minha infância e adolescência foram ativadas, estavam ligadas às águas do Guaíba em Porto Alegre (RS) onde os banhos e as pescarias eram frequentes e às caminhadas pela região portuária, com minha mãe segurando-me a mão, pois era uma menina inquieta e sempre olhava para cima, não raras vezes eu esbarrava nas pessoas e em postes. “Mira al suelo, mira por donde pisas”, repetia ela. Lembro, que o porto e o rio, sentia algo que hoje defino como um estado de numinescência[1], resultante da contemplação daquelas águas recortadas pelas ilhas, onde do lado de lá eu via as margens cobertas por matas e do lado de cá as barcas, navios, prédios e casarios antigos. Lembro do pôr-do-sol no Guaíba cintilando naquele quase mar de água doce.
Duas décadas depois do meu primeiro contato com o Porto de Cuiabá, li os poemas de Luciene Carvalho[2] e Ivens Cuiabano Scaff[3] e comecei a estabelecer conexões, localizando no território os versos desses autores. Imagens/sentimento se formavam em minha imaginação ao pensar na relação palavra/espaço/tempo.
Seria o tamarineiro que Ivens se referiu em “Noturno cuiabano” (pg.53) semelhante ao existente no quintal de Luciene, cujo tronco é tão grosso que nem se consegue abraçar? Seriam as águas onde a mãe de Luciene quase se afogou (Minha mãe, pg. 25) parecidas com aquelas que ao colocar os pés, as cintilações das estrelas se multiplicavam (Córrego das estrelas, pg. 26)?
Em outubro de 2018, os percursos realizados no Porto de Cuiabá me levaram a fazer imagens que mesclassem minhas memórias da cidade natal com as memórias do bairro. Talvez fosse uma forma de amenizar a dor de uma perda anunciada. Eu me encontrava bastante afetada pelo avanço da enfermidade de minha mãe, que já não me reconhecia, vindo a fazer a passagem em dezembro do mesmo ano.
Durante o processo criativo realizei dois tipos intervenções: - Extemporâneas com objetos afetivos nas locações selecionadas durante as caminhadas sensíveis; - Digitais com imagens do álbum de família de minha mãe e de Cuiabá antiga encontradas em livros. Percebi que o resultado final estava carregado de rastros psíquicos, que impregnaram o meu olhar sobre o patrimônio histórico material daquele território marginal.
Convido você a mergulhar nestas camadas afetivas onde tempo e espaço se misturam e que representam o olhar de um “pau rodado” [4], migrante do Sul que fincou raiz e deu frutos, agora oferecidos ao mundo.
__________________
[1] Numinescência: estado da alma de que é influenciado, inspirado pelas qualidades transcendentais da divindade.
[2] Carvalho, Luciene; Fraga, Romulo. Porto. Cuiabá:Instituto Usina, 2005, 106 p.
[3] Scaff, Ivens Cuiabano. Porto Kyvaverá. Cuiabá:Entrelinhas, 2011, 159 p.
[4] Pau rodado: alcunha dada, em Cuiabá, ao forasteiro que ali procura fixar residência.
____________________________________________________
In the following lines, I describe the feelings that ran through my creative process during the construction of this affective cartography linked to the Porto de Cuiabá neighborhood, city and river with the same name, where I have lived for over thirty years.
My first approach to the Porto neighborhood was in 1994 through “Seu Swat”, a traditional healer, who worked in his herbalist. At the time, my work was focused on the study of medicinal plants for the Master's Degree in Health and Environment at the Federal University of Mato Grosso, which resulted in the book “Medical Plants of Mato Grosso – Popular Pharmacopoeia of the healers”.
Memories of my childhood and adolescence were activated, they were linked to the waters of the Guaíba in Porto Alegre (RS) where bathing and fishing were frequent and to walks through the port region, with my mother holding my hand, as she was a restless girl and I always looked up, not infrequently I bumped into people and poles. “Mira al suelo, mira por donde pisás” she repeated. I remember that the port and the river, I felt something that I define today as a state of numinescence[1], resulting from the contemplation of those waters cut by the islands, where on the other side I could see the banks covered by forests and on this side the boats, ships, old buildings and houses. I remember the sunset over Guaíba sparkling in that almost freshwater sea.
Two decades after my first contact with the Port of Cuiabá, I read the poems by Luciene Carvalho[2] and Ivens Cuiabano Scaff[3] and began to establish connections, locating the verses of these authors in the territory. Images/feeling formed in my imagination when I thought about the word/space/time relationship.
Is the tamarind tree that Ivens referred to in “Noturno Cuiabano” (p.53) similar to the one in Luciene's backyard, whose trunk is so thick that you can't even hug it? Were the waters where Luciene's mother nearly drowned (My mother, pg. 25) similar to the ones that when you put your feet, the twinkling of the stars multiplied (Stream of the Stars, pg. 26)?
In October 2018, the routes taken at the Port of Cuiabá led me to make images that merged my memories of my hometown with those of the neighborhood. Maybe it was a way to ease the pain of an announced loss. I was quite affected by the advance of my mother's illness, who no longer recognized me, passing through in December of the same year.
During the creative process, I performed two types of interventions: - Extemporaneous with affective objects in selected locations during sensitive walks; - Digital with images from my mother's family album and old Cuiabá found in books. I realized that the final result was loaded with psychic traces, which impregnated my gaze on the material historical heritage of that marginal territory.
I invite you to dive into these affective layers where time and space mix and that represent the look of a “rounded stick” [4], a migrant from the South who took root and bore fruit, now offered to the world.
__________________
[1] Numinescence: state of the soul from which it is influenced, inspired by the transcendental qualities of divinity.
[2] Carvalho, Luciene; Fraga, Romulo. Harbor. Cuiabá: Instituto Usina, 2005, 106 p.
[3] Scaff, Ivens Cuiabano. Port Kyvaverá. Cuiabá:Entrelinhas, 2011, 159 p.
[4] Pau rodado: nickname given, in Cuiabá, to the stranger who seeks to settle there.
My first approach to the Porto neighborhood was in 1994 through “Seu Swat”, a traditional healer, who worked in his herbalist. At the time, my work was focused on the study of medicinal plants for the Master's Degree in Health and Environment at the Federal University of Mato Grosso, which resulted in the book “Medical Plants of Mato Grosso – Popular Pharmacopoeia of the healers”.
Memories of my childhood and adolescence were activated, they were linked to the waters of the Guaíba in Porto Alegre (RS) where bathing and fishing were frequent and to walks through the port region, with my mother holding my hand, as she was a restless girl and I always looked up, not infrequently I bumped into people and poles. “Mira al suelo, mira por donde pisás” she repeated. I remember that the port and the river, I felt something that I define today as a state of numinescence[1], resulting from the contemplation of those waters cut by the islands, where on the other side I could see the banks covered by forests and on this side the boats, ships, old buildings and houses. I remember the sunset over Guaíba sparkling in that almost freshwater sea.
Two decades after my first contact with the Port of Cuiabá, I read the poems by Luciene Carvalho[2] and Ivens Cuiabano Scaff[3] and began to establish connections, locating the verses of these authors in the territory. Images/feeling formed in my imagination when I thought about the word/space/time relationship.
Is the tamarind tree that Ivens referred to in “Noturno Cuiabano” (p.53) similar to the one in Luciene's backyard, whose trunk is so thick that you can't even hug it? Were the waters where Luciene's mother nearly drowned (My mother, pg. 25) similar to the ones that when you put your feet, the twinkling of the stars multiplied (Stream of the Stars, pg. 26)?
In October 2018, the routes taken at the Port of Cuiabá led me to make images that merged my memories of my hometown with those of the neighborhood. Maybe it was a way to ease the pain of an announced loss. I was quite affected by the advance of my mother's illness, who no longer recognized me, passing through in December of the same year.
During the creative process, I performed two types of interventions: - Extemporaneous with affective objects in selected locations during sensitive walks; - Digital with images from my mother's family album and old Cuiabá found in books. I realized that the final result was loaded with psychic traces, which impregnated my gaze on the material historical heritage of that marginal territory.
I invite you to dive into these affective layers where time and space mix and that represent the look of a “rounded stick” [4], a migrant from the South who took root and bore fruit, now offered to the world.
__________________
[1] Numinescence: state of the soul from which it is influenced, inspired by the transcendental qualities of divinity.
[2] Carvalho, Luciene; Fraga, Romulo. Harbor. Cuiabá: Instituto Usina, 2005, 106 p.
[3] Scaff, Ivens Cuiabano. Port Kyvaverá. Cuiabá:Entrelinhas, 2011, 159 p.
[4] Pau rodado: nickname given, in Cuiabá, to the stranger who seeks to settle there.
Luciene Carvalho, a guardadora de histórias do Porto
SINOPSE
Neste depoimento Luciene nos fala sobre o que significa morar no Porto, suas percepções sobre a degradação do patrimônio histórico material e imaterial e patrimônio ambiental relacionados ao bairro e seus sonhos para este território que fica às margens do rio Cuiabá.
Luciene é escritora e poeta, nascida em Corumbá, vive em Cuiabá desde 1974 e cresceu no bairro do Porto onde vive até hoje. Recebeu o título de cidadã cuiabana e é membro da Academia Mato-grossense de Letras, publicou diversos livros entre eles Conta-Gotas, Sumo da Lascívia, Aquelarre ou Livro de Madalena, Porto (Instituto Usina), Caderno de Caligrafia (Cathedral/Unicen), Teia (Teias 33), Devaneios Poéticos (Coletânea - Ed/UFMT), Cururu e Siriri Rio Abaixo. Estas obras conquistaram prêmios e condecorações: Flamp 92 e 93, A Crítica 2001, moção de aplausos na Câmara Municipal de Cuiabá. Como diretora participou dos documentários: Congo da Nossa Senhora do Livramento, Fronteiras do Imponderável e Filhos de São Benedito: nos ombros do andor.
Sendo uma declamadora que escreve, parte importante de seu trabalho se faz em shows, onde oferece sua poesia viva, colocando-a a serviço da emoção de platéia. Foram eles: Poesia, Versos e Cordas; Pá de Cal; Brinquedo de Espera; Jardim em Verso; Mulheres de Vênus; A Escola Literária de Samba; Canto do Porto e Insânia, entre outros.
Porto, um real transubstanciado em poesia.
Maria Thereza Azevedo
O projeto Porto Kyvaverá- cartografia afetiva de um território marginal, de Mari Gemma De La Cruz, coloca uma lente potente no histórico bairro do Porto, em Cuiabá, para dar a ver as suas feridas expostas, mas invisíveis a olho nu. Denuncia um real, memórias do descaso, ao fotografar prédios e terrenos abandonados. Mas não, sem criar um processo artístico performativo, híbrido, inserindo o projeto numa vertente da arte contemporânea, que inclui o caminhar como um procedimento estético. Caminhar pela cidade, sem destino fixo, é abrir-se para um mundo não visto no dia a dia, é uma atitude e um modo de se relacionar com a cidade. Lembra o delirium ambulatorium de Oiticica, a deriva dos situacionistas, a flanerie de Baudelaire, ou as andanças dos dadaístas e dos surrealistas. Um caminhar que sente, observa, pés que puxam para o olho o que está latejando na paisagem.
Um segundo movimento deste processo artístico é algo semelhante a uma assemblage, ou talvez uma instalação ou site especific em pleno bairro: nos becos, nos enferrujados, nos desmoronados, nos nichos largados, nos descascados das paredes, nas portas amarradas para se manterem em pé. Nestes lugares semimortos, a artista faz uma homenagem de cuidado e afeto pela cidade. Paninhos de crochê, jarros com flores, caminhos de mesa, objetos domésticos em uso são inseridos nestes cenários, como para lembrar que ali existiu vida. Estes objetos compostos na paisagem de abandono promovem uma invenção de tramas de onde podem emergir narrativas e ativação de memórias. Formam um jogo que propõe uma ressignificação do espaço, sugerindo que a cidade é como uma casa, precisa ser cuidada.
As fotografias destas composições registram a memória do vivido e a memória da efemeridade da composição, o que estava ali faz muito tempo e o que esteve ali por alguns minutos. O efêmero é para lembrar, trazer à tona, um imaginário que incide nas materialidades do real para construir sentidos de percepção e estruturar compreensões. São formas de experimentar a cidade e compor um mosaico simbólico de imagens e palavras, numa cartografia artística e afetiva dos espaços urbanos.
A partir dos registros fotográficos realizados, imagens/documentos dos cenários/paisagens, captados por ocasião das suas errâncias pelo bairro, a artista passa a interferir digitalmente nas fotos com novas composições, sobreposições, outras cores. Ocorre, então, uma mutação de dados tomados do real que provocam um estranhamento, uma transubstanciação poética. Tanto nas fotos, como no vídeo, a poesia se instaura no entre onde são construídas as fissuras/passagem para um ver além do que existe.
Cineasta, propositora de poéticas urbanas. Pesquisadora Associada do PPG Estudos de Cultura Contemporânea, ECCO/UFMT. Doutora em Artes cênicas pela USP. Orienta pesquisas de mestrado e doutorado relacionadas à arte e cidade, intervenções urbanas e teatro contemporâneo, audiovisual e artes visuais na contemporaneidade. Líder do Grupo de Pesquisa Artes Híbridas: intersecções, contaminações e transversalidades. Lìder do Coletivo à deriva.