Esta pesquisa que está em desenvolvimento fazem parte de uma série de registros realizados que buscam proporcionar a construção identitária e estabelecer paralelos entre os movimentos migratórios de minha mãe, que veio da Espanha para o Brasil na década de 60, e meu, que vivi em algumas cidades do Brasil antes de me estabelecer em Cuiabá/MT, há mais de trinta anos.
Tento reconstituir um tecido relacional e transgeracional, costurado pelos fios da memória familiar, para que eu possa sanar a memória epigenética, minha e de meus descendentes. Essa memória herdada pode ser ativada por hábitos de vida, pelo ambiente e por traumas, como abusos e aqueles desencadeados por processos migratórios, podendo desencadear enfermidade autoimune, a qual sou portadora devido a ativação genética.
Para desenvolver o presente projeto artístico, ocorreu a busca na literatura especializada por informações sobre este processo saúde/doença relacionando-o com a diáspora espanhola, no século XX, para o Brasil e os movimentos migratórios dentro do Brasil, com o objetivo de explicar a ocorrência de enfermidades autoimunes. Durante o planejamento da construção das obras e sua execução foi sendo desenvolvida uma consciência sobre a constelação familiar à qual pertenço e muitas vezes ocorreram catarses, que me permitiram avançar no desenvolvimento de resiliência.
Compreender a manifestação da memória epigenética transgeracional possibilita reconhecer os gatilhos que a fazem despertar e manifestar sintomas, desta forma é possível saná-los, proporciona a quebra dos ciclos viciosos em mim e nas próximas gerações.
A Memória epigenética é definida como pequenas modificações químicas do DNA que não alteram sua sequência, podendo ser herdadas pelas próximas gerações. Hábitos da vida e o ambiente social em que uma pessoa está inserida podem causar modificações no genoma que será transmitido aos descendentes. Estímulos ambientais e sociais podem ativar certos genes levando a sua expressão, consequentemente, a manifestação de sintomas relacionados a enfermidades. As doenças autoimunes têm forte relação com a memória epigenética.
O sujeito em diáspora se encontra no entre-lugar, isto é, pertence e não pertence, ao mesmo tempo e de igual maneira, a dois lugares distintos. Sua identidade está dissociada, fragmentada e deslocada. A pessoa que migra procura se inserir como igual aos autóctones. As desigualdades, das quais é naturalmente portador, acabam por se transformar em elementos de exclusão e reveladoras de alguma forma a alteridade que muitas vezes é encarada como fator de discriminação. Duas culturas totalmente diferentes foram experienciadas por minha mãe e por mim, a espanhola em contraposição à brasileira e a cultura gaúcha do sul do Brasil em contraposição à cultura matogrossense, respectivamente, gerando condições mentais descritas na "síndrome de Ulisses".
Minha história segue o fio do destempo. Às vezes, é inventada devido à frágil memória e à ausência de identidade e pertencimento. Para o resgate da minha história ancestral, utilizei álbuns de família, depoimentos e documentos, construindo uma linha do tempo. Compus uma narrativa história emprestada dos livros e me aproprio de fatos e fotografias, faço autorretratos, performances, uso plantas medicinais, costuro e construo objetos Percebi que o elemento água em meio a ambientes naturais estava sempre ligado às minhas memórias felizes presentes nos álbuns e na vida adulta a água está relacionada a momentos de busca pelo equilíbrio saudável.
Na elaboração de metáforas imagéticas destinadas a reconstrução destas memórias e registradas fotograficamente, foram utilizados elementos, entre eles objetos de uso cotidiano encontrados em gavetas e armários de uma casa habitada a longa data, como agulhas e linhas de costura, tecidos de algodão de sacos de açúcar, tesouras, livros, documentos, cadernos de anotações de minha mãe, plantas medicinais usadas durante minha infância, entre elas destacamos a Macela com ação analgésica, antiinflamatória e protetora espiritual. Fotografias analógicas foram reimpressas, costuradas e bordadas. Vídeos registraram pequenos rituais de cura realizados em jardins e nas águas dos rios que atravessam Chapada dos Guimarães e Cuiabá, já que dizem que a água tem memória e é guardiã da história. Também ela lava e purifica.
Quando me torno narradora dessas experiências reais, inventadas ou apropriadas da literatura, minhas e de outras mulheres, alinhavo os retalhos desse tecido social, costurando os fatos mediados por flashs de lembranças e aí busco superar a narrativa de dor transgeracional.
Esse somatório de não-Eus é como uma vestimenta, que me abriga e por vezes me obriga a seguir caminhos que não escolhi e que estão marcados em mim, na parte mais ínfima do meu ser, no DNA. Sou legado e história conectada em memórias: das águas, dos genes, dos feitos e dos desfeitos dessa humanidade.